A falta de referências culturais em relação à naturalidade do ato de amamentar é um dos grandes obstáculos a serem enfrentados tanto para o estabelecimento quanto para a manutenção da amamentação no tempo. Nesse contexto, muitas crenças e mitos surgiram em torno da amamentação, e apenas com acesso à boa informação e apoio é possível superá-los.
A amamentação e os cuidados maternos são aprendidos?
O pediatra espanhol Carlos Gonzalez¹ explica que para alguns primatas, os cuidados com a cria e a alimentação proporcionados pela mãe não são puramente instintivos. As fêmeas nascidas em cativeiro e criadas pelo homem na ausência de suas mães posteriormente não atendem as suas próprias crias, as ignoram ou as tratam de forma inadequada. Segundo ele, estas atitudes admitem duas possíveis explicações: (a) que as fêmeas que não tiveram a oportunidade de ver a outras mães criando não puderam aprender por observação; (b) que as fêmeas que não tiveram uma relação afetiva normal com sua mãe têm transtornos afetivos e não são capazes de manter uma relação normal com seus filhos. E o mais provável é que ambas se apliquem em maior ou menor medida.
O mesmo parece ter acontecido com a espécie humana ao longo das últimas décadas, especialmente em nossa cultura ocidental industrializada. Isso, em parte, explica os baixos índices de aleitamento materno exclusivo e a prevalência do desmame precoce massivo na atualidade. O que também impacta sobre a determinação da duração ideal da amamentação e o momento propício do seu término.
Como as crenças e mitos afetam nossa concepção sobre a amamentação, sua duração e término
\”Para justificar a mudança de paradigma que norteou a substituição de um padrão de amamentação universal por 2 a 3 anos para um padrão em que predominava o aleitamento artificial, foi necessário adotar algumas crenças e mitos. Uma das crenças mais danosas é a de que a amamentação dita “prolongada” faz mal à criança e à mãe sob o ponto de vista psicológico, e que deixa a criança muito dependente. Essa crença é tida como verdade, inclusive por muitos profissionais de saúde, muito embora não tenha fundamento científico algum. O oposto parece ser verdadeiro. Crianças com vínculo seguro (o que pode não ocorrer com crianças que desmamaram antes de estarem prontas) tendem a ser mais independentes, a ter mais facilidade para se separar de suas mães e a entrar em novas relações com mais segurança e estabilidade, e são, na realidade, mais fáceis de serem disciplinadas[23].
\”Outra crença vigente é a de que uma criança jamais desmama por si própria. Essa crença existe porque poucas são as mulheres que amamentam por tempo suficiente para que ocorra o desmame natural. Nesse tipo de desmame a criança se autodesmama, o que pode ocorrer em diferentes idades, em média entre 2 e 4 anos, com a participação ativa da mãe no processo, sugerindo passos quando a criança estiver pronta para aceitá-los e impondo limites adequados à idade\”².
O desmame natural não é um mito
Dito em outras palavras, o desmame natural existe. Quanto maior for sintonia entre a mãe e a criança, quanto mais compreensão das necessidades de ambos, mais naturalmente fluirá o processo. Isso porque essas sugestões e imposição de limites, sequer serão feitas de forma consciente ou como parte de um plano estrategicamente elaborado. À medida em que o bebê vai crescendo e demandando seu espaço, nós vamos permitindo que isso aconteça. No processo de aquisição da autonomia, eles voltarão a nós inúmeras vezes, e devemos respeitar e acolher. Não se trata de modo algum de regressão no comportamento, mau costume ou dependência exagerada. Trata-se de necessidade de auto-afirmação e de saber que podem contar conosco sempre. Isso lhes dará a segurança que precisam para abraçar a independência sem medos ou reservas no tempo oportuno.
Vale a pena se aprofundar no assunto e começar a questionar as crenças e mitos mais presentes no nosso contexto. Até que ponto elas têm influencidado as nossas escolhas?
[Leia mais em: Amamentação Prolongada Sem Mitos e 8 Dicas Para Manter a Amamentação no Tempo.]
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Por Gabrielle Gimenez @gabicbs
¹Carlos Gonzalez, Um presente para a vida toda, São Paulo: Editora Timo, 2018.
²Trecho do Guia Prático de Atualização, Departamento Científico de Aleitamento Materno, Nº 1, Abril de 2017, Sociedade Brasileira de Pediatria.
[Na foto: Amamentando os gêmeos juntos pela primeira vez no dia em que recebemos a alta hospitalar pós-parto. A falta de referentes culturais, especialmente no que diz respeito à amamentação de múltiplos, foi um dos grandes desafios da nossa trajetória. Graças ao exemplo de outras mães de gemelares em um grupo de apoio virtual à amamentação foi que pude assimilar a naturalidade deste ato e me munir da informação necessária, não só para lograr a exclusividade do aleitamento materno nos 7 primeiros meses, como para estender a duração da amamentação no tempo. Na data da publicação deste post, os gêmeos estão com 4 anos e 3 meses e em processo de desmame natural gradual.]
Texto originalmente publicado na minha conta do Instagram em 29 de agosto de 2019 e ampliado nesta edição.